terça-feira, 31 de outubro de 2023

Curiosidade de Mário C Matos sobre um arquivo do Antropoantro que viu hoje.

 Gostaria de saber, qual das Ântropas escreveu este texto maravilhoso.

 

 

14 de junho de 2005

 

 

Querido Diário,

 

Hoje aconteceu muita coisa interessante na minha vida. Vou contar, não se preocupe.

 

Finalmente saí da toca! Já não agüentava mais ficar preso naquilo que chamam ateliê, mudando de cadeira pra mesa pra banquinho pra cadeira de novo, sendo mexido e remexido, enrolado e desenrolado por essas mulheres que me inventaram, tendo por companhia outro cara como eu, também de plástico, só que menos brilhante e transparente. E mudo! Duvido que saiba escrever como eu...

 

Me carregaram pra um jardim. Pude ver o verde, a grama, o caminho da rua. Fui levado por duas das minhas criadoras, enquanto três outras me filmavam, fotografavam, de todos os ângulos. Tirei mesmo uma foto, sentado naquela coisa chamada carro, que me levaria a passear. Vi a rua pela primeira vez. Coisa esquisita essa que chamam de rua. Um chão escuro e duro, meio sujo, cercado por construções que chamam de casas...

 

Aí, me puseram num lugar pouco confortável.  Ouvi falar em porta-malas, seja lá o que isto for... Fiquei com a cabeça encostada em dois objetos de plástico – sei disso porque cheiravam como eu –, as pernas encolhidas, deitado de lado. Fecharam-me lá dentro. Escuridão total! Ouvi batidas de porta e o negócio que chamam carro saiu andando. Quanto solavanco! Dez ou quinze minutos de escuridão. Sei lá por onde andamos. Não vi nada. Também não dava pra ouvir nada. Paramos, finalmente, e abriram o tal de porta-malas, de onde me tiraram com jeitinho. As duas mesmas pessoas que me carregaram antes voltaram a me por de pé. Ouvi dizerem que iam deixar o carro no estacionamento. Foi quando ouvi alguém perguntar se eu poderia dar uma entrevista.

 

Imagine, querido Diário, logo de cara, no meu primeiro dia fora da toca, dar uma entrevista! E ainda por cima, sendo filmado e fotografado. Parece que sou uma celebridade dessas instantâneas, e nem nome tenho ainda. A cada vez que se referem a mim é de um jeito diferente... Ser ou não ser, Criatura, Homão, Essa coisa aí...  Na minha primeira voltinha pela cidade o que mais ouvi foi Quequéisso.  Seria este o meu nome? Vai-se lá saber!

 

Mas eu estava falando em entrevista. Eram duas mocinhas. Depois disseram que a entrevista era sobre uma tal de Reforma Universitária. Queriam saber se eu sabia o que era Reforma Universitária e o que achava dela.  Andei movendo a cabeça, pra lá e pra cá e elas acharam que eu estava respondendo. As mocinhas falaram que eram alunas do curso de Biologia, da Unicamp, e que estavam fazendo uma tarefa de uma disciplina que prepara professores. Tudo muito novo pra mim.

 

Saí carregado por outra rua, diferente da primeira: agora o chão era de pedra e cimento, de um cinza mais claro e cheio de buracos e obstáculos –. Meus pés arrastavam no chão. (também, puseram duas baixinhas para me carregar...) Fomos andando e as pessoas que passavam por nós me olhavam com olhos de espanto, algumas sorriam, outras até mesmo gargalhavam, muitos diziam quequéisso – achei que me saudavam.

 

Chegamos numa construção grande, cheia de gente e veículos que são chamados de ônibus.  Para entrar tivemos que pagar – ouvi dizerem que era dois reais para cada um de nós, eu inclusive... Me deixaram entrar numa portinha lateral, que um homem todo vestido de preto abriu.  Esse cara estava vestido igualzinho a um outro que estava do lado, suponho ser o que chamam de uniforme. Olharam pra gente desconfiados, cara fechada. Aí, vimos que perto deles estava parado um veículo grande e fechado. Ouvi falarem em transporte de valores. E que os tais guardas estavam armados... Passamos – rapidinhos – por eles, ultrapassamos o tal veículo e aí, sim, vi muita gente e os tais ônibus cheios de janelinhas e portas. Minhas acompanhantes estavam procurando um em que estivesse escrita a palavra “Rodoviária”.

 

No caminho paramos para mais fotografias, num lugar onde se vendiam roupas. Muita gente estava ali mexendo naquelas roupas. Olhavam para mim como se eu fosse um ser estranho e inesperado naquele ambiente. Seria porque eu não uso roupas?

 

Achamos, finalmente, o tal ônibus com a palavra “Rodoviária” mas ele estava cheio! Não havia cadeiras vagas. Foi nessa hora que uma menininha parou perto de mim e ficou me olhando com olhinhos curiosos, quietinha, segurando a mão de uma mulher. Perguntaram pra ela o que achava de mim e ela disse que eu era “bonito”. Fiquei feliz com o elogio.

 

Ficamos ali esperando por outro ônibus. Sentaram-me num banco. As pessoas nos cercavam, olhando, curiosidade nos olhos. Minhas companheiras me fotografavam e me filmavam quando apareceu um outro cara, vestido de caqui, segurando um treco na mão que fiquei sabendo ser um rádio de comunicação ou algo parecido. Pôs-se a conversar com as minhas acompanhantes dizendo ser proibido fotografar ou filmar dentro do Terminal Rodoviário. Se quisessem fazê-lo precisavam passar na prefeitura para obter autorização. Esquisito esse mundo dos homens que não são de plástico como eu, porque o tal lugar estava cheio de câmeras que filmavam todo mundo. Só que atrás delas não havia gente. Elas estavam penduradas lá em cima das colunas. Parece que essas estão autorizadas. Mas se tiver uma pessoa segurando não pode não. Só com autorização ­– ainda preciso entender isso...

 

O ônibus da rodoviária estava demorando muito pra sair. Chegou um outro, vazio. Mas este ia para o Terminal Central. Resolvemos embarcar nele. Me puseram numa cadeira e uma das companheiras sentou-se junto de mim – ela na janela, eu no corredor. Mais fotos, assim, meio no escondidinho, aproveitando que o tal do guarda tinha ido tratar da vida dele. Mais gente foi subindo. Os olhares espantados não me perturbaram. Acho que despertei curiosidade, mas também simpatia em quem me viu. De vez em quando via que cochichavam a meu respeito, porém poucos se aventuravam a falar comigo ou minhas companheiras de viagem.

 

O ônibus foi andando, correndo, fazendo curvas que quase me derrubavam da cadeira. A tal estrada que pegamos – o pessoal dizia que era o Tapetão, mas de tapete não tinha nada porque tapete é macio e esse tinha era muito buraco! Cada pulo! – levou-nos à cidade. De vez em quando o ônibus parava e descia ou subia gente.

 

Me lembro de um menino que usava uma camiseta do Bob Esponja. Ele ficou de pé, perto da porta do ônibus, bem pertinho do meu banco. Ele ficava me olhando, mas quando eu olhava pra ele, ele desviava os olhos, rapidinho, como se estivesse com vergonha de me encarar tanto... Bem que eu queria conversar com ele, saber o que ele achou de mim, na esperança de que ele me elogiasse como a outra menininha que me achou bonito, mas ele não me deu a oportunidade de perguntar. De repente puxou uma cordinha e desceu do ônibus.

 

De vez em quando ouvia um Quequéisso. E a resposta era “uma obra de arte” ou um “O que você acha que é?” e ouvia respostas interessantes, como “É propaganda”, “É um boneco de plástico”, “É um protesto contra os jovens que não dão lugar para os velhos” (essa eu ouvi na volta, quando me levantei para ceder lugar a um passageiro mais velho do que eu). Na ida, uma senhora parou perto de mim e conversou um pouco. Perguntou o que eu era, tenho certeza de que ela gostou de mim porque sorria muito; depois andou comentando sobre uma confusão que estava acontecendo no Congresso Nacional, um bate boca entre deputados com um tal de um Roberto Jefferson –acho que é isso – mas esqueceram de me contar o que é esse tal de Congresso e quem é esse cara da confusão. Talvez porque eu seja ainda muito novo pra ficar sabendo de patifarias.

 

Não vi muita coisa do trajeto. Eu estava mais interessado em olhar as pessoas ao meu redor e ver como elas reagiam à minha presença. Pelas caras felizes e sorridentes acho que levei um pouco de alegria e quebrei a monotonia da viagem. Sei que a viagem demorou bastante e, finalmente, descemos no ponto final do ônibus, o tal Terminal Central.

 

De novo, muita gente e muitos ônibus. De novo, quando me fotografavam e filmavam, apareceu outro guarda de uniforme caqui e uóquitóqui (falaram nessa coisa também) na mão pra avisar que era proibido tirar fotos e filmar, a não ser os autorizados pela tal de Prefeitura.

 

Aliás, querido Diário, imagino que essa tal de Prefeitura seja uma dona muito chata e mandona. Só ela que pode botar câmeras e registrar todo mundo... Ninguém mais. E ela deve ser poderosa mesmo, porque minhas acompanhantes tiveram que obedecer. Afinal, a gente não queria ir preso...

 

No Terminal Central me puseram sentado num banco sem encosto, ao lado de um senhor muito falador que começou logo perguntando se eu estava morto. Eu, morto, imagine! Acabo de nascer para o mundo! Depois perguntou se eu tinha sofrido algum acidente... Acho que ele achou que eu parecia uma múmia. Ele devia estar voltando de algum médico ou de um exame de saúde porque tinha um bandeide no braço, como se tivesse acabado de tirar sangue para exame. Como sou bem educado não perguntei nada a respeito, só constatei o fato. Esse camarada ficou fazendo mil perguntas a meu respeito. E eu fui respondendo na medida do possível. Falei que morava em Barão Geraldo, que estava passeando pela primeira vez, que ia aparecer mais vezes pela cidade, queria andar por alguma pracinha no centro, essas coisas. Quando ele perguntou como eu me chamava eu devolvi a pergunta “Como você acha que eu chamo” e ele disse que devia ser Joaquim. Sei lá porquê eu gostei desse nome. Quem sabe eu passe a me chamar Joaquim algum dia...

 

Muita gente chegou perto e perguntou sobre mim enquanto estivemos no Terminal Central. Um menininho afirmou convictamente que eu era um Homem de Plástico. Acertou. Teve gente que achou que eu era um Manequim, mas isso eu juro que não sou. As crianças se aproximavam e me cutucavam.

 

Aliás, fui muito cutucado na viagem de volta para Barão Geraldo. Principalmente pelas crianças e pelos mais velhos. Me lembro que ao chegarmos em Barão Geraldo uma senhora japonesa passou por mim e me deu um belo cutucão. Caladinha, sem dizer nada. Só me cutucou e desceu do ônibus. Eu estava esperando que todos descessem do ônibus para fazer minha saída triunfal...

 

Durante a viagem de volta mais gente me deu confiança e conversou a meu respeito com minhas acompanhantes. Uma mocinha bonitinha que estava sentada atrás de mim falou que eu poderia ser visto como um protesto contra o desperdício de plástico no mundo. Achou que eu representava um bom uso para o plástico. Ela me apreciou bastante, como uma obra de arte mesmo, gostou do meu cheiro, disse que lembrava caneca nova. Ela é professora de Biologia, formada na Unicamp.

 

Outro que conversou muito comigo foi o senhor de cabelos brancos a quem cedi o lugar. Se não me falha a memória, foi ele quem disse que eu seria um bom protesto contra os jovens que não cedem seu lugar no ônibus aos mais velhos. Muito simpático ele. Como várias outras pessoas andou perguntando do que eu era feito... Não sei se foi ele quem antes perguntou quanto tinham pagado por mim, como se eu tivesse um preço...  Eu não tenho preço. Não sou corrupto! Não me vendo!   

 

Agora, meu queridíssimo Diário, se você quer mesmo saber quem mais me apreciou neste meu primeiro passeio, acho que tenho que dizer que foram os choferes e cobradores dos ônibus. Trataram-me com carinho especial, principalmente quando chegamos de volta ao Terminal de Barão. Imagine você que o cobrador foi me carregar para eu ter a experiência de passar na roleta (antes eu tinha entrado pela porta do meio). Ficou me segurando para que me filmassem e fotografassem, tanto na roleta como descendo na porta.  Os sorrisos de satisfação deles me deixaram feliz. Acho que fui um acontecimento na vida desses homens que deve ser de uma monotonia enorme... Deve ser horrível ficar um dia inteiro indo e vindo no mesmo trajeto, agüentando passageiros nem sempre simpáticos (se bem que a grande maioria parece tratá-los com respeito). Acho que eles gostaram muito de me conhecer. Assim como eu fiquei um grande fã deles!

 

Pensa que a minha aventura terminou? Que nada! Voltamos ao estacionamento para pegar o carro. No caminho quase fiz uma das minhas acompanhantes cair... ela tropeçou no meu pé. Me deram colinho depois disso. No estacionamento queriam me usar como garoto propaganda de estacionamentos de Barão Geraldo. Os donos pediram para tirar uma foto comigo e querem publicá-la no jornal local, posando como meus amigos. Ainda vou pensar se quero ser garoto propaganda... Não sei se me agrada isto. O que você acha, Diário?  Ser ou não ser?

 

Voltei ao porta-malas e paramos num lugar chamado Tilli Center, para um cafezinho. Sentado numa mesinha do Café e Arte voltei a ser sucesso.  Até namorada arrumei, queria me levar pra casa porque está sozinha... Teve gente que levou susto, achando que eu era alguém vestido de plástico... Eu sou de plástico, mas não vestido... Mas o melhor mesmo foi o menininho que veio bem devagar e me cutucou as costas pra sentir do que eu era feito... Isto depois de ficar me chocando de longe, por muito tempo, até criar coragem... Acho que ele pensava que eu era de vidro...

 

Pois é, Diário. Seu amigo aqui foi um sucesso em seu primeiro aparecimento público. Um enigma divertido.  Ainda não sei bem quem sou ou o que quero ser. Sei que ninguém me repudiou nesta primeira saída (a cara feia dos homens de preto quando entrei no Terminal de Barão Geraldo certamente fazia parte de sua função de guardadores do tal do carro de transporte de valores... esses valores devem ser importantes para alguém, quem sabe a tal de Dona Prefeitura, aquela que não deixa fotografar ou filmar... tenho certeza de que eles teriam sorrido pra mim se não estivessem guardando os tais valores...)

 

Pena que o passeio terminou. Mas outros certamente virão. Voltei para o tal de ateliê metido no porta-malas (quase se esquecem de mim lá dentro, já pensou que sufoco?) e estou de novo sentadinho na minha cadeira favorita ao lado do meu companheiro meio esbranquiçado... Desculpe se escrevi muito. Foi o entusiasmo da primeira vez!  Antes de terminar vou te contar um segredo, meu Diário: acho que vou ganhar novos companheiros! Pelo menos tenho visto uma movimentação inusitada ao meu redor. Até minha próxima saída. Não assino porque nem mesmo sei o meu nome.  

 

 


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